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O ovo da serpente e a qualidade da democracia

Entre as diferentes formas de refletir sobre o processo democrático, há um consenso: democracias podem não durar eternamente, portanto, o monitoramento delas é fundamental

Carolina Botelho, para Headline ideias
#POLÍTICA1 de jul. de 236 min de leitura
O ministro relator, Benedito Gonçalves, no início da sessão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de julgamento da inelegibilidade de Jair Bolsonaro e de Walter Braga Netto, candidatos à Presidência da República nas Eleições 2022, em 22 de junho de 2023. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Carolina Botelho, para Headline ideias1 de jul. de 236 min de leitura

Há um debate presente no meio acadêmico que tenta elucidar fatores e variáveis determinantes para a estabilidade democrática. Pesquisadores tentam desvendar os mecanismos por meio dos quais sociedades se tornam democráticas ou não.

Uma das questões, por exemplo, é se a crença na democracia seria um fator de estabilidade democrática. Outra questão é se haveria uma relação dialética entre uma determinada predisposição democrática e a sua manutenção e conservação, o que inclui a regularidade de ciclos eleitorais, mas vai muito além disso. Entre as diferentes formas de refletir sobre o processo democrático, há um consenso: democracias podem não durar eternamente, portanto, o monitoramento delas é fundamental.

Sabe-se também que, nos últimos anos, as democracias mundiais estão se tornando cada vez mais complexas, demandando maior e mais aprofundada compreensão do comportamento dos agentes, incluindo aí atores políticos e eleitores, de forma a acompanhar e tentar gerir a democracia. O caso brasileiro, especialmente, tem mostrado que a institucionalidade democrática ainda não é de calmaria.

Alcançamos o meio do ano e as colunas políticas permanecem chamando a atenção para a mesma questão que pautou os quatro anos anteriores: golpe de estado. Muita coisa já aconteceu desde a mudança na presidência da república. Políticas públicas para a população mais vulnerável são retomadas, movimentos sociais se articulam e se organizam mais livremente, a imprensa cumpre o seu papel sem ser ameaçada, desrespeitada, xingada, a inflação dá sinais de arrefecimento, enfim, o brasileiro retira, pouco a pouco, a lama na qual submergiu nos últimos anos.

Essas questões não são irrelevantes. De um lado, estudos apontam que o respeito às liberdades civis e aos direitos políticos, assim como a implementação progressiva da igualdade política, social e econômica, são variáveis fundamentais para a manutenção da estabilidade democrática.

De outro, a atuação dos governos e de seus representantes, no sentido de responder e até corresponder aos interesses e às preferências de eleitores, além da possibilidade de cidadãos poderem avaliar e julgar as políticas públicas, assim como o funcionamento de leis, das instituições, entre outras dimensões do governo, também atuam para salvaguardar os instrumentos necessários das democracias modernas. Finalmente, a participação política, nesse rol de proteção das instituições, também cumpriria papel especial no seu fortalecimento e manutenção.

Militares e o projeto golpista

A comissão mista destinada a investigar fatos que culminaram na invasão das sedes dos três poderes da república, ocorrida em Brasília no último dia 8 de janeiro, dá boas amostras desse debate. O conteúdo produzido por lá dará uma dimensão à sociedade daquilo que resultou numa tentativa de golpe de estado no país. Depoimentos, provas, documentos, agentes participantes das oitivas, tudo isso se transformará em acervo público para que a sociedade e as instituições tomem as providências contra quem quis dar fim à democracia da Nova República. Como ocorreu na CPI da Pandemia, reuniu-se uma biblioteca de provas contra aqueles que ajudaram e promoveram o morticínio de 700 mil brasileiros pela covid-19.

A análise dessas oitivas já pode, inclusive, indicar pontos importantes. A primeira delas é que os congressistas dispostos a revelar como se organizou e se estruturou o golpe de estado se mostram mais organizados, mais bem fundamentados e conhecedores dos fatos, diferentemente do que ocorreu no início da CPI da pandemia. Está claro nos trabalhos desses legisladores que estes fizeram o dever de casa. Outro detalhe importante e que merece destaque é sobre a presença de militares. Estes são a maioria dos convocados, o que, embora mereça nossa atenção, não surpreende em razão da atuação deste segmento da sociedade no apoio a qualquer absurdo promovido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.

Como já se sabe, militares foram até o fim no projeto golpista de Bolsonaro. Muitos, inclusive, estariam dispostos até hoje, caso o ex-presidente não estivesse sofrendo uma série de reveses em seu cada vez menor capital político. Os militares brasileiros, seja de baixa ou alta patente, em grande parte se juntaram ao projeto de Bolsonaro que teve o ápice na tentativa de golpear o estado 8 de janeiro.

A tese segundo a qual o alto comando militar teria impedido o golpe é errada, já que as evidências são inúmeras e divergem dessa ideia. Como havia dito em outro espaço, não é que o alto comando não tenha aderido. É que eles são, na maioria, cérebros racionais, portanto calcularam que os custos para aderir naquele momento seriam maiores que os benefícios. Caso contrário, já estariam aqui coordenando nossos silenciamentos e prisões. Está aí o ovo da serpente. Mas a CPMI tem condições de mostrar mais disso à medida que os trabalhos prossigam.

Infelizmente, o generalato golpista que apoiou Bolsonaro, que lhe deu sustentação para o golpe, que usou recursos físicos e financeiros do estado para tentar impedir a posse de Lula pode ficar impune mais uma vez, assim como vimos tantas vezes na história da nossa república.

Havendo uma instituição dominada pela cultura política golpista, dotada de postos de comando e armas, fica difícil encontrar espaço para a promoção de uma democracia plena, ainda que outras dimensões estejam progressivamente melhorando. Sem considerar e aplicar mudanças importantes no sentido de punição a esses agentes de estado que aderiram ao golpismo, o Brasil jogará a sujeira para debaixo do tapete novamente. E se há um momento para enfrentar o problema, a hora é neste governo.

Ex-subchefe do Estado Maior do Exército coronel Jean Lawand Júnior depondo na CPMI do 8 de Janeiro. Foto Lula Marques/ Agência Brasil.
O ex-subchefe do Estado Maior do Exército, coronel Jean Lawand Júnior, durante sessão da CPMI dos atos golpistas, em Brasília, em 27 de junho de 2023. Foto: Lula Marques/Agência Brasil.

A CPMI ora em curso não pode perder essa oportunidade histórica de indicar em suas oitivas quem do baixo e alto comando dos militares tentou nos golpear e interromper nossa estabilidade democrática. Assim como nos casos apurados de possível inelegibilidade , tanto de Bolsonaro quanto de seu generalato próximo, uma “anistia” não pode ser cogitada, negociada nem considerada.

Tal qual foi feito durante a CPI da pandemia, as oitivas que apuram a tentativa de golpe no Brasil em 8 de janeiro precisam produzir um acervo para que a sociedade tenha conhecimento dos crimes ocorridos durante o governo de Jair Bolsonaro e continuados logo após sua queda, além de subsidiar as instituições para que elas punam todos os produtores da tragédia que vivemos, com prejuízos gravíssimos para as atuais e futuras gerações. Ninguém nem nenhuma instituição deve ser poupado. Mesmo levando em conta suas estrelas.

* Carolina Botelho é doutora em ciência política pelo IESP-UERJ e mestre em sociologia e antropologia pela UFRJ . Pesquisadora do IEA-USP, já atuou em outros centros como pesquisadora e professora e em órgãos de gestão pública.

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