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O olho de vidro e a cara de pau

Michelle esquenta a cadeira de Jair como promessa política do PL, já que o marido hoje está inelegível. Mulher precisa servir como uma espécie de stand by político de Jair e de Valdemar

Carolina Botelho, para Headline Ideias
#POLÍTICA17 de jul. de 235 min de leitura
Michelle Bolsonaro, presidente nacional do PL Mulher, com Amália Barros (à esquerda da foto), a quem a ex-primeira-dama pediu que retirasse a prótese ocular. Foto: Zack Stencil/PL
Carolina Botelho, para Headline Ideias17 de jul. de 235 min de leitura

Assisti algumas vezes à cena em que Michelle Bolsonaro pede a prótese ocular de uma amiga em cima de um palanque porque não acreditava no que estava vendo. A amiga é nada mais, nada menos do que a deputada federal Amália Barros, do PL-MT, e vice-presidente do segmento feminino do partido, do qual a própria Michelle é presidente. Apesar de já me considerar calejada nesse tipo específico de ser humano que emergiu nos últimos anos, duvidei se era mesmo real ou se havia ali um produto de uma nova e mais sofisticada inteligência artificial. E era tudo verdade.

Michelle chama ao palanque Amália para discursar porque ela seria um tipo de mulher, como ela, “que faz acontecer”. A partir daí se segue a cena grotesca. Michelle diz que gosta de vê-la sem prótese e que gostaria que ela falasse ao público assim. A prótese a que a ex-primeira-dama se referia era ocular. E então diz, “deixa eu segurar seu olho”. A deputada retira e entrega a Michelle, que enfia dentro do bolso como se fosse um objeto qualquer. Sequer havia uma caixinha, um saco plástico higienizado, um paninho para receber. Foi no seco mesmo. Michelle toma aquele olho com a mão e esconde na calça: “Deixa eu segurar seu olho”.

Nem a história do furto do cachorro que passou a se chamar Augusto à revelia dos donos, nem a matança das carpas do Alvorada para o recolhimento das moedas atiradas no espelho d’água do palácio me chocaram tanto. Fiquei imaginando se alguém pediria a Roberto Carlos que retirasse sua prótese da perna antes de cantar, e se o cantor aceitasse, qual seria a reação da plateia. Gostariam? Mas Michelle tem plateia que vibra com ela. O evento estava cheio e ela cultiva cada vez mais eleitorado porque pode ser o próximo trunfo do PL.

Todo mundo já percebeu que o ex-presidente não gosta de concorrência. Todos que tentaram sair da sua sombra romperam com ele. Mesmo assim, Michelle precisa no momento esquentar a cadeira de Jair como promessa política do PL já que o marido hoje está inelegível. Então a mulher precisa servir como uma espécie de stand by político de Jair e de Valdemar. Mas Michelle, assim como Bolsonaro, que emergiu da insignificância para a política, não tem nada a oferecer de contribuição ao debate ou à agenda pública. Então ela choca. E foi isso que fez. A fórmula do falem mal, mas falem de mim permanece sendo usada por essa turma. E como já estamos todos, de alguma maneira, calejados de tanta barbaridade vinda de lá, eles precisam dobrar a aposta. Daí a cena do olho. Daí o discurso de Damares Alves vazado em vídeo antes da eleição dizendo que há crianças no Brasil cujos dentes são arrancados para sexo oral, e nesse sentido, a reeleição de Bolsonaro não é uma guerra política. É uma “guerra espiritual”. Daí o “vamos metralhar a petralhada”, como disse Jair para ganhar a eleição de 2018.

O momento no qual Michelle Bolsonaro pede à deputada do PL que retire a prótese ocular em público
O momento no qual Michelle Bolsonaro pede à deputada do PL que retire a prótese ocular em público. Foto: YouTube/Reprodução

Nós

A cena toda me lembrou outra coisa. Há alguns anos assisti a um filme do genial Jordan Peele, de título Us. Nele, o diretor constrói um mundo fantástico no qual existem túneis e passagens subterrâneas abandonadas nos quais vivem duplicatas de todos nós, versões dos seres humanos que não compartilham das mesmas oportunidades ou das escolhas dos originais, e que passam a vida de acordo com quem manda, forçados a vagar em uma civilização à parte, sem qualquer liberdade e condenados a obedecer o que é imposto pelos de cima. “Nós.”

O filme sugere muitas interpretações e extrapolações e penso nele muitas vezes. Não é só U.S., é nós. Vi a cena do olho de vidro tentando entender para quem foi performada, quem essas pessoas querem atingir. E atingindo essas pessoas, caberia perguntar: que tipo de mundo é aquele no qual pessoas, famílias, um monte de gente acha aquela cena, como tantas outras que vimos nos últimos anos, “normal”? Que mundo subterrâneo é esse que se erigiu ao lado de nós e que não sabemos como começou?

Eu poderia ter só ignorado a cena como tantas outras vezes, mas não consegui. Quando assisto a espetáculos grotescos como esse, e claro, dependendo do que se trata, fico pensando se devo ou não compartilhar. Nessas ocasiões vivo um dilema, porque se, de um lado, eu acabo trabalhando por potencializar a visualização da barbárie, por outro, se opto por não compartilhar, penso que se perde uma oportunidade de dar destaque ao ridículo, ao tosco, à canalhice, ao absurdo embutido nessas manifestações. Muitas vezes, pinço o evento e tento recorrer à sátira para tentar de alguma forma chamar a atenção sobre o ridículo ou algo parecido.

O que quero dizer com isso é que fingir que não estamos vendo essas barbaridades talvez não seja a melhor estratégia. Essa turma que tem andado no subterrâneo do nosso país, que presta continência para estátua de lojas de varejo, que acredita que um ministro do Supremo foi preso sem que haja qualquer evidência, que confia na história do kit gay e da mamadeira de piroca não deveria ser esquecida porque os prejuízos que causaram ao país são grandes demais. Não dá para ignorar, chocar-se é preciso. E é sempre bom lembrar que Bolsonaro e os filhos agiram toda uma vida nos bastidores, nos subterrâneos da política, falando apenas com seus pares, sem quase aparecerem, com quase ninguém os importunando. De lá e numa janela de oportunidade saíram para a superfície. E deu no que deu.

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