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Manifestações espontâneas?

Contrariando as expectativas dos apoiadores do presidente, uma análise um pouco mais atenta desmonta a tese de espontaneidade desses movimentos

Carolina Botelho, para Headline Ideias
#Golpismo8 de dez. de 229 min de leitura
Mesmo sob chuva, manifestantes seguem pedindo golpe contra a vitória de Lula em frente ao quartel-general do Exército, em Brasília, em 15 de novembro. Foto: Sérgio Lima/AFP
Carolina Botelho, para Headline Ideias8 de dez. de 229 min de leitura

Desde as eleições, apoiadores do presidente Jair Bolsonaro seguem nas ruas manifestando repúdio às eleições ocorridas em outubro de 2022. Para essa parte da população, as eleições deveriam ser anuladas porque foram fraudadas. Nenhum desses apoiadores de Bolsonaro se baseia em qualquer evidência sobre a fraude que apontam. E nem poderiam, em razão de não existir. A despeito dessa realidade, continuam resistindo ao resultado, atacando o sistema político, pedindo golpe de estado com intervenção das Forças Armadas. E então bloqueiam estradas, impedem o livre trânsito das pessoas e permanecem em acampamentos enfrentando toda e qualquer adversidade sem que nada indique que seus clamores serão ouvidos.

O curioso desses eventos é que tanto manifestantes quanto lideranças ligadas a Bolsonaro tratam essas ocupações como um fenômeno espontâneo, segundo o qual parte da sociedade, insatisfeita pela suposta fraude eleitoral, estaria disposta a ir às últimas consequências para restabelecer a escolha “democrática” das urnas, aquela que manteria Jair Bolsonaro no posto de presidente da República a partir de janeiro de 2023. Assim, as Forças Armadas, como aliadas dessa retomada, estariam autorizadas a tomar diversas medidas, entre as quais a prisão do candidato eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, e dos ministros do Supremo Tribunal Federal, especialmente Alexandre de Moraes, que ocupa a presidência do Tribunal Superior Eleitoral. Sendo assim, manter no ideário coletivo que esses movimentos são algo espontâneo seria uma forma de legitimá-los perante a sociedade, sugerindo que são uma resposta cívica à fraude eleitoral e, com isso, teriam uma cada vez maior adesão de pessoas. Esse é um ponto importante.

Contrariando as expectativas dos apoiadores do presidente, afirmo que uma análise um pouco mais atenta desmonta a tese de espontaneidade desses movimentos. Se a olhos nus isso não fica tão claro, sugiro recorrer à ciência social ou a cientistas sociais para ajudar nessa tarefa, já que esse campo da ciência possui métodos específicos e ferramentas que podem auxiliar a destrinchar fenômenos sociais como estes, complexos e multicausais. Claro que não esgotam todas as explicações, mas apontam direções interessantes. Faço a partir daqui algumas sugestões.

O passo inicial seria o de observar o perfil socioeconômico de quem participa. Também importaria mapear sua localização, o contexto histórico, assim como as características mais importantes do movimento, de forma a tentar entender algumas “leis gerais” que o regem. Acontece que, como todo fenômeno social, este é multifacetado e responde a diversos incentivos, sejam eles políticos, culturais, sociais, econômicos, psíquicos, entre outros. Além disso, nem todas as informações que temos estão disponíveis para serem organizadas. Sabemos também que qualquer investigação que se faça procurando respostas nos próprios bolsonaristas corre o risco de ser malsucedida. Entretanto, mesmo com limitações, as informações que a sociedade já dispõe sobre esses movimentos permitem entender o que tem operado em torno deles. E nem tudo é espontâneo.

A primeira observação deve levar em conta um pequeno resgate dos últimos anos, nos quais o presidente Bolsonaro se dedicou, no exercício da presidência, a uma campanha sem fim pela reeleição. Pouca coisa que tenha feito como chefe do Executivo mirava algo além de sua manutenção no poder. Nesse processo, ele alimentou sua base de apoio popular com teorias conspiratórias de várias naturezas, como as urnas eletrônicas permitiriam fraudar as eleições, o que poderia ser alegado caso ele não fosse reeleito. Muitos analistas políticos se questionavam se Bolsonaro fazia uma escolha correta ao apostar somente no engajamento de sua base radical, sabendo que esta seria insuficiente para ganhar as eleições.

Hoje já se tem clareza que, mesmo não tendo sido suficientemente forte para a vitória, poderia ser para questionar o processo eleitoral e, consequentemente, seu resultado. Associado a isso, ainda guardava outros trunfos como o orçamento secreto e a omissão e conivência de atores políticos estratégicos, instituições políticas e órgãos de controle que ignorariam regras importantes em defesa de qualquer ação que ajudasse Bolsonaro a se reeleger. O ponto aqui é mostrar que não é novidade que o presidente, ao menor sinal de diminuição de sua popularidade, indicava que contestaria qualquer escolha que não fosse ele nas eleições. Portanto, era previsível que isso ocorreria.

Uma segunda observação a destacar refere-se à geografia desses fenômenos. Passadas algumas semanas da derrota, um exercício comparativo mostra que as manifestações pró-golpe de Estado têm se concentrado com maior força em cidades do interior e redutos que serviram de base de apoio ao longo de todo seu mandato. Cidades do sul, centro-oeste e norte têm sido palcos privilegiados dessas arruaças. E parece ser lá também que a estrutura do estado não esteja chegando satisfatoriamente para reprimir ações mais violentas. Têm repercutido denúncias de que elites regionais, descontentes com o resultado nas urnas, têm se dedicado a financiar as ocupações e os bloqueios de estradas.

As mesmas regiões, inclusive, são aquelas em que o presidente teve apoio resiliente mesmo em momentos mais graves da pandemia. Poderíamos até argumentar que nessas regiões, nas quais se concentram mais apoiadores de Bolsonaro, a eclosão de movimentos espontâneos se tornaria possível. Mas os últimos quatros anos mostraram que o mais provável é que essas manifestações respondam a uma lógica de organização bem parecida com todas as outras em apoio ao presidente ao longo de seu mandato. Uma vez dado o comando por parte das lideranças para que a militância radicalizada fosse para as ruas, em pouco tempo conseguia-se mobilizar um contingente para brigar pelo presidente. Até a estrutura dessas mobilizações, como alojamentos, os transportes para deslocamento, a presença de caminhões, tratores, etc, parecem seguir certo padrão.

Elites financiadoras

Uma terceira observação que é possível fazer é sobre as elites regionais, que têm aparecido em investigações jornalísticas e judiciais como estimuladoras e financiadoras desses movimentos. Seria importante avaliar como e quanto elites regionais têm se empenhado nesse esforço dando estrutura aos manifestantes. Conhecer essas facetas é importante também para entender se há predisposição desses grupos a mais violência, e se sim, quantos, como, de onde vêm.

Já se sabe que são movimentos violentos, mas não conhecemos exatamente qual o nível de violência que vai ser utilizado numa próxima ação. O Brasil tem vindo de um cenário de violência política crescente. Há muito pouco tempo, por exemplo, uma pessoa foi morta dentro da sua festa de aniversário porque era militante do PT. E é importante lembrar que o crescimento assustador de violência política ocorre ao mesmo tempo em que se observa omissão de órgãos e instituições do atual governo que deveriam agir para mitigá-la. Para agravar mais a situação, a postura – supostamente silenciosa – do presidente preocupa.

Todo esse exercício de análise é importante para o processo de consolidação democrática, pois os mecanismos que esses grupos no poder têm usado nos últimos anos para desestabilizar nossas instituições podem ser novamente utilizados e melhorados. Não devemos perder isso de vista. Muito cientistas sociais, portanto, têm se dedicado a essa função social. O judiciário também tem prestado um relevante serviço ao mapear grandes empresários, membros de nossas elites econômicas que se engajam na tese golpista. Mas creio que não são suficientes.

Bandeiras à venda em São Paulo. Assim como elas, camisetas da CBF também foram símbolos usados nas manifestações. Foto: Felipe Paiva/HDLN
Bandeiras à venda em São Paulo. As camisetas da Seleção Brasileira também foram usadas como símbolo nas manifestações. Foto: Felipe Paiva/HDLN

Mesmo que não sejam suficientes, os diagnósticos apontados nessas análises devem servir de recurso para autoridades públicas se manifestarem e agirem para defender as instituições. A natureza das ciências sociais não é normativa, mas cumpre uma função propositiva importante. Através dos estudos, investigações iniciaram e chegaram a termo nesses últimos anos. Só precisamos de mais. A identificação de lideranças ligadas ao bolsonarismo, de empresários e de grupos geraram efeito positivo para sociedade uma vez que inibiram ações mais radicais do que as que temos visto. A parceria entre o judiciário brasileiro e grandes empresas de redes sociais, mesmo que insuficiente, foi um passo positivo para retomar as regras do estado de direito. Empresários que antes não se preocupavam sequer em se esconder por trás de crimes contra o Estado hoje estão mais preocupados.

Identificar e punir

Um passo na direção de revigorar o ambiente deveria ser, portanto, o de identificar se há mais grupos, e, principalmente, se há autoridades públicas que organizam esses ataques ao estado de direito em forma de ocupações e bloqueios. Mais fundamental ainda é saber se essas pessoas cumprem função institucional, isto é, se estão alocadas na burocracia do estado. Já vimos que algumas estão. Há outras? Há aquelas cuja importância pública torna ainda mais grave o estímulo dado à população radicalizada?

Seria interessante também pensar que, da mesma forma que as redes sociais se tornaram um desafio para nosso sistema democrático, elas também podem cumprir um papel fundamental, sendo utilizadas, inclusive, como ferramenta desradicalizadora. É necessário ter em perspectiva que os eleitores de Bolsonaro, ainda que convirjam em algumas opiniões, não são quantitativamente iguais àqueles que estão hoje acampados nem têm as mesmas disposições autoritárias. De um lado há interesse na radicalização por parte do Estado desenhado na figura do presidente, militares, policiais que atuam no meio desses movimentos e com o incentivo de empresários financiadores. De outro lado, parte da militância que foi radicalizada, que está sendo apropriada e utilizada institucionalmente por esses grupos.

Por fim, quando falamos dessa resistência, pode parecer que é uma organização muito espontânea de um grande eleitorado da sociedade, mas não, isso não é verdade. As evidências indicam haver financiamento, incentivo e organização concentrados em determinados grupos da sociedade, entre os quais alguns com muito poder econômico. Importante neste momento é continuar a investigar, punir e entender, principalmente, o motivo pelo qual existe tanto empenho numa tentativa de fragilizar o sistema democrático. O que ganham esses grupos? Tudo o que está ocorrendo é grave e não pode ser ignorado pela sociedade que escolheu nas urnas se manter democrática.

* Carolina Botelho é doutora em ciência política pelo IESP-UERJ (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e mestre em sociologia e antropologia pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Pesquisadora do IEA-USP (Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo), já atuou em outros centros como pesquisadora e professora e em órgãos de gestão pública.

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