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Democracia tutelada

Na contramão de Argentina e Chile, pouco se avançou no Brasil na responsabilização por crimes de tortura, desaparecimento e mortes na ditadura. A cada tentativa, há forte reação das Forças Armadas

Carolina Botelho, para Headline Ideias
#POLÍTICA2 de fev. de 238 min de leitura
Ato pelas vítimas da ditadura militar, em Brasília, em 31 de março de 2019. Fotos: Daniel Marenco/HDLN
Carolina Botelho, para Headline Ideias2 de fev. de 238 min de leitura

Nos meus primeiros contatos com o ofício de pesquisadora, ao integrar um núcleo do Laboratório de Pesquisa Social do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), ainda na graduação, tive como missão estudar a memória das famílias dos desaparecidos políticos no Brasil. O governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) já trabalhava para constituir algumas frentes importantes para o reconhecimento de crimes da ditadura e a Lei dos Desaparecidos Políticos (nº 9.140/95) entrava em vigor, fruto da convicção democrática do próprio presidente que assumia e de pressões de grupos nacionais e internacionais. A referida lei foi proposta já no primeiro ano de mandato de FHC, ele mesmo vítima da perseguição dos ditadores.

Para a realização da pesquisa, fiz algumas visitas à sede do grupo Tortura Nunca Mais, assim como sucessivas entrevistas com militantes de esquerda durante a ditadura militar no Brasil, alguns dos quais, amigos de militância dos meus próprios pais. Sem que eu soubesse na época e dada a minha pouca experiência, o projeto de pesquisa me permitiria resgatar fatos importantes do passado brutal do Brasil pós-64 e, por tabela, realizar uma imersão em sombras que ainda pairavam nos primeiros anos de minha infância.

Embora não fosse a solução definitiva para os crimes de tortura e desaparecimento ocorridos durante o governo militar, a promulgação da lei foi um marco para as famílias dos desaparecidos políticos e considerada uma vitória. Importante lembrar que, até 1995, as famílias das vítimas nunca haviam recebido os restos mortais de seus parentes assassinados pelo Estado, o que, na prática, impossibilitava que seguissem suas vidas, que pudessem construir uma memória desses familiares, já que não se sabia exatamente onde eles estavam. Havia parentes que ainda esperavam o retorno dessas pessoas, pasmem!

A falta de notícias transformava os familiares em fantasmas, não se sabia se um filho era ou não órfão, se uma mulher seria viúva ou ainda casada, se uma mãe chorava só pela distância do filho ou saudosa pelo filho morto. E além do terror de conviver com o sumiço abrupto de pessoas que amavam, ainda precisavam lidar com a falta de documentos que comprovassem as suas mortes, o que inviabilizava uma série de resoluções burocráticas, como atestados de óbito, pedidos de concessão de pensão para cônjuges e filhos, documentos que precisamos ter quando um parente próximo morre. Isso para relatar o mínimo. Com ela, os desaparecidos políticos puderam ser considerados mortos oficialmente e o Estado brasileiro assumia a responsabilidade pelas torturas, traumas e mortes do passado, o que poderia dar seguimento ao curso legal de responsabilização antes negado pelo governo militar, sendo, portanto, um passo importante para a consolidação de nossa democracia.

Crimes de tortura: o Brasil na contramão

Na contramão do que ocorreu na Argentina e no Chile, países cujas ditaduras também barbarizaram seu povo, pouco se avançou no Brasil no sentido de responsabilizar crimes de tortura, desaparecimento e mortes durante o regime militar. A cada tentativa, aparecia uma forte reação das Forças Armadas e de setores reacionários da sociedade.

Foi o que ocorreu quando se instaurou a Comissão Nacional da Verdade durante o governo de Dilma Rousseff (2011-16). O colegiado tinha por finalidade apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 1946 e 1988, incluindo os governos militares pós-1964. Não é preciso dizer que a instalação da comissão incomodou a caserna. O general Villas Bôas, o mesmo que em 2018 ameaçou a república através de um tuíte com o consentimento das Forças Armadas, teria chamado o colegiado de “revanchista”, como se pode ver na biografia do mesmo escrita pelo antropólogo Celso Castro. Naquele momento, o tuíte do general em defesa da prisão de Lula escancarou o que hoje está mais claro: o país passou as décadas da Nova República sob um tipo de tutela velada das Forças Armadas que se faz presente até hoje, à revelia do texto constitucional. Tanto no episódio da Comissão Nacional da Verdade quanto no da prisão de Lula, o que estava em jogo era conter a ameaça que cada um desses eventos significava para as Forças Armadas, isto é, tanto o funcionamento da comissão quanto a liberdade de Lula significariam uma ameaça aos privilégios dessa corporação. Tudo isso, alegadamente, em nome da pátria e da nação.

Esse movimento se mostra cristalino na biografia de Villas Bôas, escrita pelo antropólogo Celso Castro. O general justifica o afastamento da ex-presidente Dilma Rousseff com uma retórica bem difundida na caserna, construída e compartilhada nos quartéis, ainda que totalmente divergente de fontes e documentos históricos. Diz ele: “Os cada vez mais evidentes indícios de corrupção, a evolução negativa da economia que nos legou um quadro de recessão e os moldes sob os quais trabalhou a Comissão da Verdade. A Comissão nos pegou de surpresa, despertando um sentimento de traição em relação ao governo. Foi uma facada nas costas, mesmo considerando que foi decorrência de antigos compromissos assumidos pela presidente Dilma.”

Corrupção era também pratica de gestores na ditadura

Ora, quem conhece minimamente a história sabe que há nesse relato alguns elementos falsos. O primeiro deles é a aversão à corrupção, sempre seletiva. Os documentos da história nos mostram como a corrupção era prática comum entre gestores da ditadura e como foi entre gestores militares do governo Bolsonaro. O mesmo se pode dizer do péssimo desempenho de nossa economia em ambos os períodos, com aceleração inflacionária e da desigualdade entre ricos e pobres. Eleger esses fatores e a Comissão da Verdade como justificativas para a reação militar é uma retórica frágil.

O que a história nos mostra é que toda vez que o Estado brasileiro tenta responsabilizar militares por suas ações ou tirar-lhes privilégios que nenhuma outra instituição no Brasil possui, eles reagem, e no limite, caso possam, ameaçam. Não havia nada de novo, como tentou sugerir o general. A Comissão da Verdade foi só mais um episódio de tantos outros. A eleição de Lula em 2022 foi o mais recente evento de ameaça ao status quo da “família militar”, essa categoria analítica instigante que merece ser cada vez mais esgotada pelos especialistas. E o que houve de fato? Reação de boa parte da famigerada família militar na forma de coparticipação nos atos golpistas de invasão aos prédios dos Três Poderes, conforme foi exaustivamente informado pela imprensa.

A dita família estava presente em muitas delas, assim como estiveram presentes nos acampamentos pró-golpe de Estado, o esquenta para a insurreição de 8 de janeiro. Até a esposa do general Villas Bôas marcou presença entre os acampados no Quartel-General de Brasília, cumprindo fielmente seu papel na família militar.

Segundo o próprio general explicou em sua biografia: “Talvez em nenhuma profissão as esposas são levadas a exercer um papel tão importante para o ambiente social da instituição e para o rendimento profissional dos maridos. (...) São essas abnegadas que, seguindo os maridos, são encontradas onde houver uma unidade do Exército, desde as grandes cidades até os pelotões especiais de fronteira, movidas tão somente pelo dom de servir, pela dedicação à família e pelo amor ao país.” (...) “Esposas: Quantas vezes foram flagradas vibrando em nossas simples, mas solenes formaturas, cantando nossas canções, bradando nossas saudações, incorporando por amor o entusiasmo típico dos soldados por vocação. Quanto conforto e solidariedade distribuíram, secundando-os em seus deveres de chefes, como verdadeiros anjos que, com doce coragem e suave determinação, dão vida e sentido ao que chamamos de família militar”.

Ato pelas vítimas da violência do Estado e por ditadura nunca mais, em Brasília, em 31 de março de 2019. Foto: Daniel Marenco/HDLN
Cartaz com fotos de desaparecidos durante a ditadura em passeata em Brasília, em 31 de março de 2019.

Após celebrada transição para a democracia, os anos que se sucederam pareciam mostrar que, pouco a pouco, a sociedade civil da Nova República tinha as rédeas. A discussão sobre se o Brasil seria ou não uma democracia consolidada parecia superada e os problemas da agenda nacional se tornaram aqueles comuns às democracias modernas mundo afora. Mas os últimos anos foram educativos no sentido de mostrar que estávamos errados. A vitória de Bolsonaro, em 2018, foi só mais uma evidência de que o país conservou diligentemente terreno fértil para que a caserna mantivesse uma espécie de tutela sobre nós, sempre atenta e pronta a agir quando o curso da república ameaçasse seu universo particular.

A pergunta a ser feita é, a quem interessa essa tutela, além da própria corporação? Este é um terreno e uma agenda de pesquisa que merecem avançar, bem como se faz necessário extrapolar como e por que essa estrutura permanece em condições de nos tutelar por tanto tempo.

* Carolina Botelho é doutora em ciência política pelo IESP-UERJ e mestre em sociologia e antropologia pela UFRJ. Pesquisadora do IEA-USP, já atuou em outros centros como pesquisadora e professora e em órgãos de gestão pública.

 

 

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