Conecte-se

Ideias

#POLÍTICA

Construção do caminho

No passado e hoje, as mesmas forças políticas trabalham para eximir de responsabilidade os militares, mesmo diante de evidências gravíssimas. A ideia da tutela militar, discutida pelo professor José Murilo, permanece viva nas relações entre atores políticos e militares da nossa República, como se nada tivesse ocorrido

Carolina Botelho, para Headline Ideias
#POLÍTICA17 de ago. de 235 min de leitura
Militar recolhe a bandeira do Brasil no pátio do Palácio do Planalto, em Brasília. Foto: Daniel Marenco/HDLN
Carolina Botelho, para Headline Ideias17 de ago. de 235 min de leitura

Soube com tristeza da morte de José Murilo de Carvalho, historiador e cientista político, professor admirável e educadíssimo, de quem tive a honra de ser aluna, durante meu curso de mestrado na UFRJ, numa disciplina chamada Cidadania no Brasil. Na época do curso, José Murilo lançava mais uma importante obra, homônima à disciplina que ministrava. Seus outros livros, “A Construção da Ordem”, “Os bestializados”, “A formação das almas”, “A cidadania no Brasil: o longo caminho”, “Forças Armadas e Política no Brasil”, entre outras, marcaram a minha formação e a de milhares de alunos de ciências sociais no Brasil. Em todos eles, o professor se ocupou de tentar explicar os inúmeros dilemas e desafios de nossa República, que não têm nada de triviais.

Nos últimos anos, estive atenta a suas últimas entrevistas buscando ajuda, palpite, alguma ideia ou evidência importante que esclarecesse as interrogações sobre o período tenebroso que atravessávamos após um supostamente bem-sucedido período de democratização. José Murilo era um desses intelectuais que levam alguma luz à escuridão, e ainda que eu discordasse de algumas de suas análises políticas, sempre reconheci que sua obra nos ajuda a buscar saídas para o país.

Como nós, cientistas sociais, o professor não escondia nessas entrevistas o pessimismo com os rumos que o país tomava. Em uma delas, em conversa com a jornalista Miriam Leitão, José Murilo foi peremptório a respeito do governo Bolsonaro e demonstrou preocupação com uma das questões mais graves que ocorriam em sua administração: o comportamento dos militares, em especial do Exército. Nas suas palavras, “eles são corresponsáveis pelas trapalhadas do governo e agora não haverá como evitar que a imagem das Forças Armadas seja afetada. Os erros terão cor verde-oliva”.

A instituição era velha conhecida das pesquisas do professor, que afirmava que nossos militares exerciam uma tutela e que esta seria, por sua vez, um “defeito fundador da República brasileira”. Para José Murilo, os militares brasileiros seriam, portanto, atores estratégicos que conduziam as situações de forma a conservar poder diante de si, mesmo depois da democratização. No então governo Jair Bolsonaro, a tese da tutela militar se mostrava ainda mais presente por meio de uma articulação entre questões do passado e do presente, que operava de forma a restaurar o protagonismo político desse grupo. E estava certo.

O historiador José Murilo de Carvalho, que ocupava a cadeira número 5 da Academia Brasileira de Letras (ABL) , morreu na madrugada deste domingo (13), aos 83 anos. Foto: Arquivo ABL
O historiador José Murilo de Carvalho, que ocupava a cadeira número 5 da Academia Brasileira de Letras (ABL) , morreu na madrugada deste domingo (13), aos 83 anos. Foto: Arquivo ABL

Assim como o professor José Murilo, nós, cientistas sociais, temos dedicado o trabalho a tentar desvendar o que ocorreu com nosso país. Pessimistas como ele, compartilhamos de certa ideia de que a vitória do último governo significava também um certo grau de fracasso coletivo de todos. É como se o ato da posse do ex-presidente resumisse nossas falhas, nossos erros como sociedade, permitindo que forças reacionárias passassem a dar as cartas novamente. O que havia de fato acontecido para o país desembocar naqueles porões novamente?

Na redemocratização, abriu-se algum espaço, na formação profissional de nossas Forças Armadas, para que lideranças civis gradualmente posicionassem os militares em papéis mais alinhados com suas missões constitucionais na nova democracia. E é aí que surgem as indagações que têm acompanhado os pesquisadores das ciências sociais. O que explicaria, por exemplo, a persistência, a manutenção de poderes e a interferência militares para fora da caserna? Entre ciclos de ativação e acomodação, por que eles retornariam de tempos em tempos para manejar recursos de poder e decidir nossos rumos políticos e sociais? Que grupos têm dado sustentação a esses reveses democráticos e por quê? Estas são perguntas pertinentes para o Brasil de hoje em diante. Penso que ignorá-las é elevar a gravidade dessas questões.

Em diferentes períodos da história, militares ocuparam um espaço institucional na política e nas decisões do país. Já a entrada do povo na política foi tardia. No período recente, foi a classe política, em primeiro lugar, que permitiu mais uma vez que militares decidissem sobre os rumos do Brasil. A malfada administração de Michel Temer abriu as portas para um grupo que já dava sinais de operar na lógica do reacionarismo tacanho do pós-64, desembocando no trágico governo Bolsonaro. No passado e hoje, as mesmas forças políticas trabalham para eximir de responsabilidade os militares, mesmo diante de evidências gravíssimas. A ideia da tutela militar, discutida pelo professor José Murilo, permanece viva nas relações entre atores políticos e militares da nossa República, como se nada tivesse ocorrido.

A parte democrática e progressista da sociedade brasileira atravessa um momento privilegiado, que deveria ser aproveitado. O presidente Lula ganhou há oito meses as eleições mais difíceis e violentas do período da Nova República. Apesar de ter ganhado com uma pequena margem de votos, as últimas pesquisas nacionais dão conta de que sua aprovação segue crescente, inclusive entre apoiadores do governo Bolsonaro. Além disso, resultados de pesquisas como “A Cara da Democracia”, do Cesop/Unicamp, mostram que a confiança nas instituições militares foi impactada negativamente após seu embarque no governo Bolsonaro. Não é difícil supor que seria uma resposta ao padrão declaradamente golpista que muitos militares têm desempenhado, ao envolvimento na tragédia do combate à epidemia de covid-19, às falcatruas e aos esquemas de corrupção evidenciados em investigações ou pela imprensa. As lesões têm cor verde-oliva e não podem, mais uma vez, deixar de ser julgadas.

#POLÍTICA
JOSÉ MURILO DE CARVALHO
GOVERNO BOLSONARO
DEMOCRACIA
MILITARES