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Balas de estalo

Não é novidade que Jair Bolsonaro, preocupado em manter governabilidade e se proteger do impeachment, entregou nas mãos de Arthur Lira recursos do orçamento quase infinitos, sem transparência ou prestações de conta

Carolina Botelho, para Headline Ideias
#POLÍTICA22 de dez. de 224 min de leitura
Foto: Marcos Corrêa/PR
Carolina Botelho, para Headline Ideias22 de dez. de 224 min de leitura

Usando o pseudônimo Lélio, Machado de Assis escreveu entre 1883 e 1886 uma série de crônicas chamadas “Balas de Estalo”, publicadas na Gazeta de Notícias. Em meio a mudanças profundas, como transformações urbanas, movimento abolicionista, além de tantas outras, o genial Machado quis saber dos seus leitores o que cada um achava que significava a política.

"O que é a política?", perguntava ele como numa espécie de survey da época (seria Machado o primeiro pesquisador de opinião pública que tivemos?). E choveu resposta. Um dos motivos para tantas opiniões enviadas seria, segundo o próprio escritor, o fato de haver "neste mundo uma infinidade de filhos de Deus, ou do diabo que os carregue, que estão à espreita de um simples pretexto para comunicar as suas ideias, ainda à custa dos vinténs magros." (Machado se surpreenderia com as redes sociais de hoje).

Em meio a tanta carta, o autor percebeu, no entanto, que não havia entre elas sequer uma escrita por um deputado ou senador, o que motivou uma renovação do pedido dele especialmente direcionado aos legisladores, culminando em uma publicação do escritor na Gazeta sobre uma resposta, ainda que de maneira indireta, vinda de um político que estava na Câmara.

Escreveu Machado sobre a resposta:

"S. Exa. disse na Câmara que quer a abolição imediata, mas aceitou o projeto passado e aceita este, pela regra de Terêncio: quando não se pode obter o que se quer, é necessário que se queira aquilo que se pode. Regra que me faz lembrar textualmente aquela outra de Thomas Corneille: Quand on n'a pas ce que l'on aime. Il faut aimer ce que l'on a. Terêncio ou Corneille, tudo vem dar neste velho adágio, que diz que quem não tem cão, caça com gato."

Exatos 138 anos separam essa definição da política dos acontecimentos que nos cercam hoje no Brasil. O significado é tão valioso que consegue sobreviver até os dias atuais. E não fosse o empecilho de mais de um século nos separando, seria difícil entender como que o conselho não chegasse ao atual presidente da Câmara, Arthur Lira.

Desde as eleições de outubro, o brasileiro tem sentido um ar mais respirável na cena política. A votação para presidente deu início a uma espécie de reconstrução de certa normalidade perdida, um dia a dia político mais ordinário que não vivíamos há tempos. Mas como transformações profundas demoram a acontecer, não seria difícil supor que há muita coisa ainda a ser mudada até que o terreno esteja menos tenso do que os dos últimos quatro anos. Entre as coisas a ser modificadas, estaria o tal orçamento secreto, desenhado para proteger um presidente da república em apuros.

Não é novidade que Jair Bolsonaro, preocupado em manter governabilidade e se proteger do impeachment, entregou nas mãos de Arthur Lira recursos do orçamento quase infinitos. De posse deles, Lira poderia usá-los como preferisse, sem se preocupar com a transparência ou com possíveis prestações de conta. O resultado é que o deputado conquistou poder jamais imaginado para ele, além de ter ajudado parte dos deputados da base do governo a ser reeleita. Muita gente ganhou, mas quem ganhou especialmente foi Arthur Lira. De deputado pouco demandado, alçou-se a superpresidente da câmara dos deputados e a uma das pessoas mais poderosas da república.

O problema é que o presidente da câmara não pareceu conhecer a definição de política do legislador da crônica machadiana. Lira ignorou, sei lá por quê, que no mundo da política as coisas podem mudar de uma hora para outra, sobretudo quando lideranças mudam. Com um novo eleito na presidência da república, seria razoável pensar que outros poderes se organizariam em torno de novas agendas, de novos atores, novos sistemas de disputas seriam criados, novas ideias emergiriam e a correlação de forças estaria delimitada por novas urgências. Nesse novo momento, o orçamento secreto não apareceria mais entre as necessidades. Ou melhor, a nova urgência é que não houvesse mais o orçamento secreto!

Difícil imaginar que um cara minimamente experimentado tivesse apostado em certa imutabilidade de suas conquistas recentes. O fato é que a imprensa deu que Lira foi ingênuo ao achar que, mesmo mudando o presidente da república, o resto ficaria como estava para simplesmente servi-lo ou agradá-lo. Seguindo esse raciocínio, a ingenuidade de Lira pode ter lhe custado o susto dos últimos dias, quando o STF mostrou a inconstitucionalidade do "seu" orçamento secreto, além de uma tremenda perda de poder. Como Lira não previu essa nova dinâmica quando tentou dar as velhas cartas para um governo novo? Será que Lira era apenas uma bala de estalo como outras peças do governo Bolsonaro? A ver.

 

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