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Os reacionários querem voltar aos seus dias de glória

Se ainda havia dúvidas, ontem ficou claro que o governo Lula tem nas mãos o problema clássico de coordenação política

Carolina Botelho, para Headline Ideias
#POLÍTICA31 de mai. de 236 min de leitura
Deltan Dallagnol para discursa e votar a favor do texto-base do projeto de lei do Marco Temporal, mesmo tendo sido cassado há poucos dias. Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados
Carolina Botelho, para Headline Ideias31 de mai. de 236 min de leitura

Assim como ocorreu em outras regiões do mundo, como nos Estados Unidos e em países da Europa, as eleições brasileiras de 2018 foram marcadas pela vitória de uma liderança populista autoritária. Aqui, o chefe do executivo eleito rompeu com os padrões de competição partidária até então em vigor e trouxe consigo, para o exercício de seu cargo, uma agenda francamente autoritária, reacionária e com temas radicalmente contrários às normas liberais que sustentam a democracia brasileira. As consequências disso já conhecemos, sendo todas elas parte de nossa história.

Entre os efeitos deletérios de uma governança como a que tivemos nos últimos quatro anos, o ápice da dramaticidade está na morte de mais de 700 mil brasileiros pela pandemia do coronavírus. A combinação de incapacidade administrativa, perversidade, negacionismo científico e sufocamento de recursos para pesquisas levou o país a estar entre as piores nações do mundo em termos de coordenação de ações contra o vírus. Não é que tenha faltado liderança. É que a liderança ajudou a promover o morticínio pela ação ou omissão.

Não menos grave foi a tentativa de golpe de estado, tendo o seu apogeu no dia 8 de janeiro deste ano. São fortíssimos os indícios que levam a crer que o ex-presidente fomentou, organizou e providenciou uma tentativa de golpe, que começou a ser mais agressiva ainda em meados de dezembro, quando Brasília sofreu uma explosão de violência política, servindo de cenário para inúmeros casos gravíssimos, como focos de incêndio em vários pontos centrais da cidade, barricadas, carros incendiados, tentativa de explosão de um posto de gasolina e do aeroporto na época do Natal, extremistas tentando arremessar um ônibus do viaduto e até a invasão do edifício-sede da Polícia Federal pelos golpistas.

Antes desses ataques, sabe-se que também são inúmeras as evidências de que o estado brasileiro foi utilizado grosseiramente para financiar a reeleição de Bolsonaro. Logo após a eleição de 2018, eu manifestei em fóruns públicos minha preocupação com a gigantesca estrutura que a máquina do estado poderia oferecer a quem tinha interesse em permanecer no cargo.

A literatura da ciência política é farta em demonstrar as vantagens ligadas diretamente ao exercício do cargo, tais como a visibilidade que o mandato permite, o apoio político de lideranças de partidos em vários estados da federação, os recursos financeiros disponíveis, o controle dos gastos públicos e a vantagem competitiva que se conquista comparada a dos demais candidatos ao cargo. Bolsonaro usou e abusou desses recursos como se previa.

As reportagens atuais sobre o rombo na Caixa Econômica Federal para fins de reeleger o ex-presidente confirmam mais essa tentativa do ex-chefe do executivo de permanecer no cargo de qualquer maneira. É preciso que todos esses eventos sejam lembrados cotidianamente por nós. O mais grave de tudo isso é que o populista autoritário esteve por um triz de se reeleger!

A despeito de todos esses gravíssimos eventos, sabemos que há uma parcela expressiva e persistente do eleitorado brasileiro que ainda apoia o que vivemos. Pensar que essa parcela de eleitores vai se esvair no tempo e no espaço ou apenas torcer para que isso aconteça é um autoengano irresponsável. O reacionarismo aceso e estimulado nos últimos anos quer de volta seus dias de glória e não vai descansar. Para tanto, vai utilizar os recursos que lhe sobraram para barganhar e retornar ao poder. E Arthur Lira dá sinais – ainda – de que pode também ajudar.

As votações recentes na Câmara dos Deputados preocupam. O governo está minoritário e atado para fazer valer as pautas que prometeu levar consigo na emocionante e esperançosa subida da rampa no dia de sua posse. Por outro lado, munido do controle e do poder legislativo que conquistou ao barganhar a governabilidade do ex-presidente, Lira tem tido sucesso em sustentar suas próprias pautas que, já se viu claramente, não são as do país.

Para piorar, entre suas prioridades há aquelas que convergem com as da extrema-direita, ávida por retornar aos seus dias de glória do passado recente. Lira mantém essa chama acesa como mecanismo de barganha com o novo executivo. Prova disso é o espaço dado a Deltan Dallagnol para discursar e votar a favor do gravíssimo texto-base do projeto de lei do Marco Temporal, mesmo tendo sido cassado há poucos dias.

Do outro lado, vê-se que o governo foi fraturado para a votação. A situação, e não a oposição, chegou para votar dividida, sem consenso. Como pode? Se ainda havia dúvidas, ontem ficou claro que o governo Lula tem nas mãos o problema clássico de coordenação política.

Não se discute a dificuldade de um governo que chega ao poder com a frente ampla que se organizou contra o fascismo. É difícil mesmo, com consequências tangíveis para sua comunicação com as bancadas partidárias do legislativo. Mas também é preciso lembrar que o presidencialismo brasileiro reconhece a predominância do chefe do executivo.

Lula segura seus óculos durante uma coletiva de imprensa conjunta com seu colega venezuelano Nicolas Maduro no Palácio do Planalto, em Brasília, em 29 de maio de 2023. Foto: Evaristo Sá/AFP
Lula segura seus óculos durante uma coletiva de imprensa conjunta com seu colega venezuelano Nicolas Maduro no Palácio do Planalto, em Brasília, em 29 de maio de 2023. Foto: Evaristo Sá/AFP

Lula precisa fazer valer sua liderança e coordenar a frente ampla sob o risco de abrir mais o flanco que a extrema-direita tenta explorar. Há, no entanto, uma ofensiva ocorrendo no judiciário contra o extremismo, como nas prisões de Anderson Torres e do coronel Mauro Cid, entre outros apoiadores do ex-presidente. Tem também outros esforços sendo feitos, como a condenação da vergonhosa entidade Médicos Pela Vida, o afastamento de Dallagnol, o processo que Carla Zambelli enfrenta no TSE sem qualquer ajuda de seus colegas, além da provável inelegibilidade do ex-presidente.

Tudo isso tem atacado o coração do bolsonarismo e da extrema-direita erigida nos últimos anos. Esses movimentos são importantes e dão fôlego ao governo Lula. Mas é preciso aproveitar o momento, reconhecer que há falhas na coordenação e que é preciso Lula tomar para si seu protagonismo nas relações com o legislativo, principalmente na câmara. Tem que sair dos bastidores, assumir a dianteira nas negociações e usar a caneta de presidente. O da república, claro.

* Carolina Botelho é doutora em ciência política pelo IESP-UERJ e mestre em sociologia e antropologia pela UFRJ . Pesquisadora do IEA-USP, já atuou em outros centros como pesquisadora e professora e em órgãos de gestão pública.

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